domingo, 23 de maio de 2010

O ceticismo que vê além

A humanidade passa, hoje, por um período de transição no modo de enxergar a si própria e ao mundo em que vive. Com as ciências naturais atingindo níveis de desenvolvimento outrora inimagináveis, aproxima-se cada vez mais de respostas objetivas e categóricas às velhas perguntas: “o que somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?”. Por outro lado, constantemente associadas a episódios e fatos trágicos, e a cada dia mais presas a suas armadilhas de incoerência e improbabilidade, as crenças místicas e religiosas apresentam-se em franco processo de decadência. Fato é que nunca antes os céticos, os cartesianos e os agnósticos dispuseram de tanto espaço para expor e argumentar a favor de suas idéias.

A última Festa de Literatura Internacional de Paraty, ocorrida em julho de 2009, teve, entre seus destaques, o biólogo queniano Richard Dawkins. Mundialmente reconhecido como um dos maiores defensores da teoria da seleção natural de Charles Darwin, Dawkins foi responsável por significativos progressos na mesma ao longo do século XX. Sua participação na Flip, no entanto, nada teve a ver com biologia. Os holofotes se voltaram para o autor por conta do lançamento, em 2006, de Deus, um delírio, obra que rapidamente se tornou um best-seller, por apresentar, de forma leve e até sarcástica, argumentação sistemática e precisa contra a existência de religiões.

Livre do estereótipo de velho comunista e rabugento, constantemente associado àqueles que se declaram ateus ou agnósticos, Dawkins apresenta, paralelamente à sua desconstrução da suposta necessidade humana por crenças místicas, uma visão que pode ser considerada bastante otimista sobre o potencial do homem. E eis aí o ponto crucial da ampla divulgação de idéias como as do biólogo: nos dias em que vivemos, o ceticismo e a racionalidade não estão mais necessariamente associados ao pessimismo e à falta de esperança para com o destino da humanidade.

Já é razoável, hoje, que se pense que o progresso humano não mais depende de crenças espirituais e de religiões. Seria, hipocrisia, é claro, negar sua importância para a história da humanidade. Mas os tempos são outros. As questões que a religião sempre se propôs a responder agora se mostram próximas, ou ao menos a caminho, de ser desvendadas. Pela ciência. Sem mistérios, dogmas anacrônicos ou dízimo. Não seria, então, razoável pensar que a religião acabou por tornar-se inútil? Uma ferramenta obsoleta, que hoje só traz males à sociedade? Até onde se pretende chegar com uma fé cega e de fundamentação duvidosa, posto que já temos meios através dos quais enxergar, racionalmente, os caminhos para nosso progresso e desenvolvimento, moral e material?

Muitos poderiam argumentar que a religião costuma representar, para seus seguidores, uma fonte de conforto espiritual, ou mesmo um motivo fundamental para que mantenham-se moralmente íntegros. Ora, não estariam esses argumentos impregnados de imaturidade e irresponsabilidade quase infantis? Não denotariam eles um verdadeiro pavor, que boa parcela da humanidade ainda conserva, de encarar a realidade de olhos abertos? É muito fácil apegar-se a aquilo que, por definição, não admite tentativas de explicação ou questionamentos. E dizer “temos de ser bons, pois Deus nos está observando, e queremos todos ir para o céu”. Difícil é pensar e tentar chegar a fundamentos verdadeiramente sólidos para aquilo que se pensa ou faz. Mas o fato é que o homem do século XXI já é crescido o suficiente para encarar esse desafio, e tentar ser bom, ou meramente útil aos demais, por conta própria. A existência de pensadores como Dawkins, e de inúmeros outros como ele, prova isso.

Não é necessário entrar no mérito da discussão sobre a existência ou não de Deus, de espíritos ou de orixás. O verdadeiro cerne da questão é o tratamento intelectual que se dá a essas possibilidades. Por que continuar a se apegar a crenças improváveis, de ares mitológicos, quando se pode dar sentido concretamente embasado aos atos humanos? Já passou da hora de a espécie que se julga soberana nesse planeta assumir a responsabilidade por aquilo que faz, e deixar de jogar tudo sobre os ombros de seus amigos imaginários. O século vigente é o XXI, e já está mais do que provado que o ceticismo não é uma visão de mundo limitadora, nem uma exclusividade dos amargos e desesperançosos. É, sim, uma verdadeira ferramenta, através da qual se pode questionar e evoluir de forma saudável. Através da qual é possível ir além do que se pode imaginar, dentro dos ordinários limites da realidade.