sexta-feira, 24 de setembro de 2010

The rainy spring

São quatro horas da tarde de uma sexta feira que marca o final de uma semana extremamente cansativa e estressante. Mais nenhuma tarefa a ser feita para um futuro próximo. Ele se deita, buscando repor as energias gastas. Buscando obter o inocente e sublime prazer de atender às necessidades de seu corpo.

Imerso no aconchegante silêncio de seu quarto, marcado apenas pelos pingos da chuva que cai lá fora, ele fecha os olhos e tenta encontrar seu momento de paz. Mas o silêncio o leva a um turbulento encontro com si próprio. Horas martirizantes de sedentarismo, que se mostram cada vez mais inférteis. Um sonho, antigo e gigantesco, que marca os comos e porquês de cada um de seus passos. Lembranças. Antigas namoradas, antigos amigos. Deveria tê-los tratado diferente? Anseios, desejos. Ele poderia apostar sua vida que ela um dia será sua. Mas hoje não é esse dia. Dá de ombros e resolve tentar dar tempo ao tempo.

Mas começa a prestar atenção nas batidas de seu coração.

Menos uma, menos duas, menos três. Quantas ainda lhe restarão? E se lhe restarem centenas de milhões? O quanto ele conseguirá fazer valer cada uma delas? O ligeiro desespero, que o acomete toda vez que percebe a fragilidade de sua própria existência, logo passa. A existência é frágil mesmo. É sim. E não tem que ter sentido ou peso algum. Mas ele quer que a sua tenha peso, relevância. Os maiores possível!

Se não para o mundo, ao menos para ele mesmo.

O desespero manso que havia arrefecido agora volta, sufocante, fulminante. Ele tem o peso de sua própria vida em suas mãos. Ele tem cada batida de seu coração como que dependendo de seu aval, de sua assinatura, para se tornar um pequeno episódio em uma vida humana, ou permanecer como apenas mais algumas frações de segundo em uma esquálida sobrevida. Dialoga com a última batida, perdida aí em algum lugar do futuro. Ele pode acovardar-se e morrer desde já, tornando-a apenas mais uma. Mas inquieta-se ao constatar que tem o poder de fazê-la ter remorso por ser a última.

De fazer a sua própria morte arrepender-se de ser a sua morte.

Mas e o mundo? E a dor? E os riscos, o ridículo, os outros, as críticas? E a sua cara no espelho todos os dias? Quantas vezes já não teria dito “que se dane!” para si mesmo, para seu orgulho e seus medos, contradizendo-se imediatamente após botar os pés para fora da zona de conforto? Quantas batidas já não teria desperdiçado assim? Ri-se. Viver é difícil quando se tem a si próprio no caminho. Viver é difícil porque se tem a si próprio no caminho. Sentado, confortável. Conformado. Fingindo aprender ao observar a vida passar, só para ter pretextos para não ter que agir.

E como prosseguir sem proferir mais um “que se dane!” em vão? Talvez pela primeira vez na vida, lembra-se, com saudades, da infância. Aquela inocência toda não era tão ruim, afinal de contas. Sua criatividade não tinha limites. Não tinha compromisso algum para com a realidade. Não tinha nenhum “que se dane!” para dizer a si próprio. Construiria mundos inteiros, se tivesse a chance, mas não tinha as mãos que o permitiriam fazê-lo. E agora se dava conta que, pelos últimos anos, andara tentando obtê-las ao custo de sua própria essência. Um câmbio morto, como se tentasse trocar a música pelo som. Um livro pelas palavras
Folhas em branco por todo o conteúdo que as borra e preenche.

Sem ter conseguido dormir, pula da cama num estalo de excitação. O som de seu coração o compele a sair e viver. Encarando-se no espelho, hesita antes de balbuciar as palavras de desprezo por seus medos e fraquezas. Procura pelo brilho imaginativo que tanto havia marcado seu olhar anos antes. Pergunta-lhe o que fazer.

Em recebendo respostas pouco condizentes com a realidade, sai satisfeito para a rua.

Tem um sorriso sutil no rosto. E não deve mais nada às batidas de seu coração.

domingo, 20 de junho de 2010

São sempre as mesmas canções


Os acordes são sempre os mesmos. As palavras são sempre as mesmas. São sempre as mesmas canções. Desesperadoramente incompletas. E dia após dia você se olha no espelho. Ingenuamente, você espera ver ali uma saída. “Ridículo”, pensa, depois de alguns minutos de observação estéril. É óbvio que não encontrará nada. Não encontra. E sai. Ou ao menos é o que desejaria fazer.

Anda pelas ruas bufando e rosnando. E quanto mais o faz, mais sente raiva de si. Cada novo olhar trocado com a realidade é pretexto para que você se enclausure mais. Cada um que passa ao seu lado é motivo para que você finja que não passa ninguém. A irritação, contraditória, te cerca sem que você possa fazer menção de tentar sair. O ciclo é de vício e desespero.

O grito nunca soa.

A sensação é a de que o ser curioso e fascinado que havia dentro de você morreu. E tudo te incomoda. Nada mais quer te provocar paixão. A vontade é a de expor para todo o mundo a dor da sua perda. Mas mesmo o choro parece se recusar a sair. Mesmo isso parece querer se esconder de você, enquanto você tenta despejar alguma coisa, qualquer coisa, sobre o mundo ao seu redor.

Então você se anula.

Continua seu dia como se nada tivesse acontecido. Finge não querer dizer nada. Quer dizer tudo, mas não tem palavras. Faz o jogo da sua fraqueza e tenta escondê-la, ocultando sua existência. É óbvio que não consegue. E fica claro que isso de nada vale.

Só o que você quer é ter algum peso. Fazer alguma diferença. Chamar alguma atenção. Você quer achar sua voz, e continua buscando-a incessantemente.

Mas os acordes são sempre os mesmos. As palavras são sempre as mesmas. São sempre as mesmas canções.

E a incompletude é o tom da realidade.

sábado, 12 de junho de 2010

Sobre homens e fluidez

A frieza e o excesso de preocupações rondam sua cabeça. Você, acostumado com o tom cinzento que o mundo adquiriu ultimamente, permanece em sua rota, impassível, inabalável: em piloto automático. Finge não ligar para isso, mas, lá no fundo, para si mesmo, nunca nega o quanto se incomoda. “A realidade não é colorida”, repete, em frente ao espelho, como se fosse um mantra. A sua realidade não é colorida.

Até que ela aparece.

Sutil, graciosa. Ao final de mais um dia de tédio e cansaço. Como se não quisesse nada, ela surge em seu caminho. Dissimulada. Penetra seus sentidos, arrebata toda a sua atenção. Sentimentos novos. Seu corpo vibra de uma forma diferente. O mínimo que ela lhe diz se torna porta de entrada para um novo universo a ser descoberto. Um novo oceano. Escuro, misterioso, ainda frio. O mar de incerteza dá a nova cor ao seu mundo. O cinza, morto, se apaga. Você, agora, é movido quase que irracionalmente por uma curiosidade incontrolável. Uma vontade infinita de saber o que há além. Se há algo além.

Possessivo, mesmo desconhecendo-a quase que por completo, você garante tê-la sempre a seu alcance. Quer explorá-la a cada nova oportunidade. Tenta seduzir. Não sabe por onde começar. Quer entender, ainda que saiba que é a falta de compreensão que o move. Você insiste. Ela só te conta o que quer contar. Pouco a pouco. Uma palavra por dia. E é o mistério constante que sempre o leva de volta.

A cada novo toque, as sensações se repetem. Novas surgem. A cada novo toque, você, sonhador, imagina um futuro. O ‘nós’ passa a existir. Torna-se relação de simbiose. A doce fragilidade dela te encanta. A fluidez dela te encanta. Conforme a descobre, mais e mais, você a envolve. A traz para a realidade. E se dá conta de que nunca encontrará sentido nela.

Ela não tem que fazer sentido.

Mas você só percebe isso quando ela já se tornou o seu.

domingo, 23 de maio de 2010

O ceticismo que vê além

A humanidade passa, hoje, por um período de transição no modo de enxergar a si própria e ao mundo em que vive. Com as ciências naturais atingindo níveis de desenvolvimento outrora inimagináveis, aproxima-se cada vez mais de respostas objetivas e categóricas às velhas perguntas: “o que somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?”. Por outro lado, constantemente associadas a episódios e fatos trágicos, e a cada dia mais presas a suas armadilhas de incoerência e improbabilidade, as crenças místicas e religiosas apresentam-se em franco processo de decadência. Fato é que nunca antes os céticos, os cartesianos e os agnósticos dispuseram de tanto espaço para expor e argumentar a favor de suas idéias.

A última Festa de Literatura Internacional de Paraty, ocorrida em julho de 2009, teve, entre seus destaques, o biólogo queniano Richard Dawkins. Mundialmente reconhecido como um dos maiores defensores da teoria da seleção natural de Charles Darwin, Dawkins foi responsável por significativos progressos na mesma ao longo do século XX. Sua participação na Flip, no entanto, nada teve a ver com biologia. Os holofotes se voltaram para o autor por conta do lançamento, em 2006, de Deus, um delírio, obra que rapidamente se tornou um best-seller, por apresentar, de forma leve e até sarcástica, argumentação sistemática e precisa contra a existência de religiões.

Livre do estereótipo de velho comunista e rabugento, constantemente associado àqueles que se declaram ateus ou agnósticos, Dawkins apresenta, paralelamente à sua desconstrução da suposta necessidade humana por crenças místicas, uma visão que pode ser considerada bastante otimista sobre o potencial do homem. E eis aí o ponto crucial da ampla divulgação de idéias como as do biólogo: nos dias em que vivemos, o ceticismo e a racionalidade não estão mais necessariamente associados ao pessimismo e à falta de esperança para com o destino da humanidade.

Já é razoável, hoje, que se pense que o progresso humano não mais depende de crenças espirituais e de religiões. Seria, hipocrisia, é claro, negar sua importância para a história da humanidade. Mas os tempos são outros. As questões que a religião sempre se propôs a responder agora se mostram próximas, ou ao menos a caminho, de ser desvendadas. Pela ciência. Sem mistérios, dogmas anacrônicos ou dízimo. Não seria, então, razoável pensar que a religião acabou por tornar-se inútil? Uma ferramenta obsoleta, que hoje só traz males à sociedade? Até onde se pretende chegar com uma fé cega e de fundamentação duvidosa, posto que já temos meios através dos quais enxergar, racionalmente, os caminhos para nosso progresso e desenvolvimento, moral e material?

Muitos poderiam argumentar que a religião costuma representar, para seus seguidores, uma fonte de conforto espiritual, ou mesmo um motivo fundamental para que mantenham-se moralmente íntegros. Ora, não estariam esses argumentos impregnados de imaturidade e irresponsabilidade quase infantis? Não denotariam eles um verdadeiro pavor, que boa parcela da humanidade ainda conserva, de encarar a realidade de olhos abertos? É muito fácil apegar-se a aquilo que, por definição, não admite tentativas de explicação ou questionamentos. E dizer “temos de ser bons, pois Deus nos está observando, e queremos todos ir para o céu”. Difícil é pensar e tentar chegar a fundamentos verdadeiramente sólidos para aquilo que se pensa ou faz. Mas o fato é que o homem do século XXI já é crescido o suficiente para encarar esse desafio, e tentar ser bom, ou meramente útil aos demais, por conta própria. A existência de pensadores como Dawkins, e de inúmeros outros como ele, prova isso.

Não é necessário entrar no mérito da discussão sobre a existência ou não de Deus, de espíritos ou de orixás. O verdadeiro cerne da questão é o tratamento intelectual que se dá a essas possibilidades. Por que continuar a se apegar a crenças improváveis, de ares mitológicos, quando se pode dar sentido concretamente embasado aos atos humanos? Já passou da hora de a espécie que se julga soberana nesse planeta assumir a responsabilidade por aquilo que faz, e deixar de jogar tudo sobre os ombros de seus amigos imaginários. O século vigente é o XXI, e já está mais do que provado que o ceticismo não é uma visão de mundo limitadora, nem uma exclusividade dos amargos e desesperançosos. É, sim, uma verdadeira ferramenta, através da qual se pode questionar e evoluir de forma saudável. Através da qual é possível ir além do que se pode imaginar, dentro dos ordinários limites da realidade.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Um insight de sexta feira a noite

Acho que eu cheguei a uma resposta satisfatória para aquela velha pergunta: “o que é ser feliz?”. Tenho pensado muito a respeito. Tenho vivido muito a respeito. Talvez não tanto e como eu gostaria. Mas acho que a resposta está justamente aí. Felicidade, eu acho, não é sinônimo de plenitude, nem de realização completa e eterna. A minha última semana foi tediosa, cansativa, improdutiva, levemente irritante, meio frustrante. E a conclusão que eu tirei dela é que eu sou um cara feliz. E por que?

Os últimos meses da minha vida foram, como quaisquer últimos meses de qualquer vida, de altos e baixos. Mais altos do que baixos, é verdade. Contudo, semanas como a que eu acabo de passar nunca deixaram de dar as caras, com suas pontadas de frustração e melancolia. Mas uma coisa mudou em relação a um, dois anos atrás. Eu me conheço melhor. Sei de quem se trata quando me olho no espelho. Tenho ao menos uma noção do que vai acontecer a cada movimento meu. Tenho alguma idéia da opinião que os outros têm a meu respeito, mas isso não importa: eu tenho uma opinião formada a meu respeito.

E aí? Minha opinião é de que eu sou absolutamente completo e de que não preciso de mais nada nem ninguém? Absolutamente não, ponto. É justamente o oposto disso que fundamenta o simples fato de eu estar escrevendo esse texto. Eu reconheço a minha incompletude, eu a conheço. Talvez não tenha consciência absoluta de cada um dos meus defeitos e faltas, mas tenho uma noção dos caminhos que minha mente percorre. Por outro lado, poderia começar a enumerar aqui tudo aquilo que eu acho que tenho de bom. Minhas características físicas que me satisfazem, meus talentos, meus traços de personalidade que me fazem pensar que sou um cara legal ou minimamente agradável. E a conclusão disso seria? Nenhuma. Geraria satisfação momentânea, efêmera. Saber o que tenho de bom não seria, em absoluto, suficiente para me fazer feliz.

O fato é que conhecer minhas características como ser humano, ou ao menos boa parte delas, permitiu-me encontrar uma porta velha e enferrujada, normalmente esquecida pela maioria das pessoas. Atrás dela, nenhum pote de ouro ou qualquer coisa parecida. Mas, pura e simplesmente, um caminho adequado para a minha vida. Compatível com quem eu sou. A felicidade, afinal, é isso. Saber quem você é e aprender a viver de acordo com isso. Parece tão babaca, banal. E nesse exato momento estou sentindo um certo desprezo pelo tom de auto-ajuda que esse texto adquiriu. Mas é simples. É rústico. Sem potes de ouro no fim do arco-íris.

Eu sou adepto de um modo absolutamente realista e racional de ver o mundo e a mim mesmo. Nos últimos anos, tornei-me ferrenho defensor da ótica sob a qual a vida humana é vista, pura e simplesmente, como uma conseqüência efêmera das leis da natureza. Não há propósito, razão ou um grande arquiteto por trás de tudo. Não há universo algum conspirando a seu favor. Há a natureza. Ponto. E eu e você somos frações infinitesimais dela. É nisso que eu acredito.

Mas o curioso disso tudo é que passei minha adolescência inteira acreditando em contos de fadas. Fazia questão de acreditar que tudo tinha um porquê. Por diversas vezes, procurei ‘ajuda espiritual’ para tentar me conhecer melhor. Queria soluções mágicas. Queria ser feliz, me livrar dos meus defeitos. Queria ser alegre em tempo integral. Nunca consegui. E só fui encontrar aquilo que passei a considerar felicidade verdadeira quando larguei esse tipo de crença, alienante e limitadora.

Então, estou assumindo que felicidade não é, em absoluto, sinônimo de alegria. Alegria é estado de espírito, absolutamente efêmero, e muitas vezes gerado por uma vida vivida de forma feliz, com autoconhecimento. Mas o grande lance é que, quando se é verdadeiramente feliz, se é feliz mesmo na fossa. A felicidade é um caminho, não um objetivo. Quando chega a momentos difíceis, tediosos, estressantes, pouco empolgantes, aquele que é verdadeiramente feliz saberá ultrapassar aquilo, saberá que aquilo será importante para o seu desenvolvimento, mas, acima de tudo, saberá que aquele momento de aparente infelicidade é tão momentâneo e efêmero quanto os momentos de alegria que passaram e que virão.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A vida lá fora, pt. I: Luz cegante

Ele se escondeu nas sombras até não suportar mais a escuridão. Medo. Medo do claro. Medo da luz. Medo da cegueira que ela poderia lhe causar. Mas lá, além do escuro, além da parede, através da fresta sob a porta, ele ouvia a vida, respirando lentamente. Estava em coma, imersa na luz cegante, esperando pela hora de acordar. E num lapso de loucura ele se ergueu.

Movendo-se com desenvoltura pela escuridão que lhe era tão nítida, dirigiu-se à porta. E quando a simples perspectiva de abri-la estendeu-se à sua frente, suas mãos começaram a tremer, o coração acelerou. Desesperado de excitação, ele se viu dividido. Dividido entre a sede de conhecer o que o aguardava além e a vontade de permanecer para sempre no escuro, em segurança e comodidade mórbidas. Chorou. Tantas vezes aquelas paredes o haviam protegido e confortado, e agora ele as abandonava. Por dentro, ele sabia que agora as desprezava. Sabia que estavam envelhecendo, e que um dia elas ruiriam. E não queria estar lá para ver.

"Não importa, não importa", pensou. E num ímpeto, abriu a porta pesada e barulhenta, e a luz finalmente entrou. Invadiu seus olhos, que se fecharam, o cegou. Ele se ajoelhou, chorando alto, arrependido de ter feito aquilo. Chorou como chora de remorso um suicida, e só se acalmou quando começou a lentamente perceber que seus soluços agora se harmonizavam com uma respiração vigorosa, que antes era distante, vinha de fora, mas que agora se aproximava cada vez mais de seu âmago.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Mó Num Patropí. E daí?


O povo brasileiro não prima por ser nacionalista. Acostumados com o excesso de autocríticas completamente destrutivas e, silenciosamente, cada vez mais feridos pelo complexo de vira-latas, os brasileiros raramente cultivam o hábito de se orgulhar de seu país.

É nesse momento que o leitor mais revoltado se exalta e diz: “Ora! Mas do que é que devo me orgulhar? Como posso me sentir orgulhoso de um país no qual o Estado abandona os cidadãos, obrigando os ricos a recorrerem ao sistema privado e, pior, os pobres a recorrerem ao crime?”. E eu respondo: não peço que você se orgulhe, pois também não o faço.

No entanto, não é estranho pensar que, durante a Copa do Mundo, todos pareçam se tornar “brasileiros com muito orgulho e muito amor”? Não é estranho que, quando se fala em internacionalizar o território amazônico, muitos brasileiros batam no peito e digam que “a Amazônia é nossa!”, com aquela cara de Goku Super Sayajin (sorrindo com a testa franzida, como quem diz “eu estou sendo severo, mas estou fazendo a coisa certa!”)?

Se você é brasileiro e não é um vegetal, certamente já presenciou situações desse tipo. Agora, pare e pense. Qual é o sentido desse tipo de orgulho? O Brasil pode ter uma natureza exuberante, sendo inclusive um destaque mundial nesse aspecto. Mas isso é um mero acaso territorial!

Eu não me sinto orgulhoso por ter nascido e viver no mesmo país que abriga a maior parte do território amazônico. Especialmente porque o Brasil não sabe cuidar daquilo que tem. É, na verdade, um grande motivo de vergonha que tenhamos a Amazônia e a tratemos tão mal.

O mesmo vale para o futebol. Por que eu devo me orgulhar da seleção brasileira? Eu não tenho nenhum mérito pelo fato de o Robinho, o Ronaldinho, o Zezinho ou o Luisinho, outrora meninos pobres e talentosos, terem sido descobertos por fulanos que os levaram para grandes clubes, dando início a carreiras que culminaram com participações em Copas do Mundo. O país não tem nenhum mérito por isso.

O mais revoltante de tudo é que exemplos como a floresta amazônica e o talento futebolístico de nossos jogadores são provas, em minha opinião, do enorme potencial que o Brasil abriga em suas entranhas, ao mesmo tempo que provam que o país não sabe aproveitá-lo.

Quando falo sobre tal potencial tupiniquim mal aproveitado, gosto de tomar, como ponto de comparação, o Japão. Trata-se de um país de proporções minúsculas e, no entanto, com uma população de tamanho próximo ao da brasileira. Obviamente, o espaço que pode ser dedicado à agricultura é mínimo. O Japão é, ainda, marcado por algumas regiões sujeitas a condições climáticas extremas, vulcões em atividade e ocorrência diária de terremotos. Como se isso não bastasse, seu território foi castigado, durante a 2ª Guerra Mundial, por bombardeios norte-americanos, dos quais as bombas atômicas foram apenas uma parte e, pasme, não foi a maior.

Hoje, no entanto, esse país tão maltratado pela natureza e por sua própria história, é a segunda maior economia do mundo, e tem alguns dos melhores indicadores socioeconômicos. Quando falam sobre a reconstrução japonesa no pós-guerra, historiadores chamam o período de “Milagre Japonês”. Os japoneses se ofendem com tal terminologia, e orgulhosamente dizem que “não houve milagre, mas trabalho”.

A diferença entre o orgulho japonês e o brasileiro é o simples fato de os japoneses parecerem ter, e de fato terem, um motivo muito sólido para se orgulharem de seu país. Em uma comparação, o orgulho brasileiro parece forçado, parece uma manifestação mista de desespero e ignorância, de um povo que não sabe de que se orgulhar e que procura por uma identidade.

O brasileiro, se quiser realmente obter algo de que se orgulhar, precisa começar a fazer autocríticas mais construtivas, precisa aprender a cobrar mais de seu Estado, de seus compatriotas e de si mesmo em prol do país. Caso contrário, seremos o eterno “país do futuro”, com um enorme potencial mal aproveitado. Isto é, até que o mau aproveitamento seja tamanho que faça com que nossos intermináveis recursos se esgotem, e a famosa canção tenha de ser mudada para “Eu morava num país tropical”.

Esse texto foi originalmente publicado no site jornalístico Delfos.